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19 de Maio de 2024

O Estado como responsável pela perda da chance de cura e sobrevida do paciente do SUS

A via crúcis da vítima de infarto no Estado de Sergipe

há 7 anos

A Folha de São Paulo publicou [1] no último dia 30/03/2017 o resultado de uma pesquisa que ampliada para a esfera do território nacional, demonstra a ineficácia da prestação de saúde por parte do Estado e demonstra o abismo entre o SUS e a rede privada de saúde.

O estudo entitulado de VICTIM (Via Crúcis para o Tratamento do Infarto do Miocárdio), realizado por 36 pesquisadores e sob a condenação de José Augusto Barreto Filho, professor da Universidade Federal de Sergipe, acompanhou por um ano e quatro meses 460 vítimas de infarto (uma das principais causas de morte dos brasileiros) atendidas nos hospitais especializados em cardiologia no Estado de Sergipe (um público e três privados).

Os resultados do estudo denotam a flagrante desigualdade da saúde pública brasileira, projetada à luz do que ocorre no Estado de Sergipe: 84% das vitimas de infarto em Sergipe dependem do SUS, que só possui um hospital especializado em cardiologia; ao passo que 16% dependem dos hospitais particulares, que são três no Estado. Isso faz com que a taxa de mortalidade de pacientes do SUS de Sergipe seja o dobro em relação aos que têm plano de saúde e são tratados em hospitais privados (10,3% contra 4,9%).

As consequências não poderiam ser diferentes: a taxa de mortalidade de pacientes do SUS de Sergipe é o dobro em relação aos que têm plano de saúde e são tratados em hospitais privados (10,3% contra 4,9%). É dizer: o paciente cujo direito à saúde é custeado pelo Estado possui o dobro de chances de ser vítima fatal de um infarto em comparação àquele que custeia a saúde de maneira privada.

O estudo apurou que dentre as circunstâncias que dão notoriedade ao referido contraste tem-se a demora no transporte do paciente diagnosticado com infarto para hospital com especialidade cardiológica coberta pelo SUS. Isso porque, a janela temporal para o tratamento do infarto, que deveria ser de no máximo 12 horas, na prática vem sendo em média de 27 horas, não obstante Sergipe ser o menor Estado do país, com municípios no máximo 200 quilômetros distantes da capital Aracaju.

A consequência é nefasta: apenas 47,5% dos pacientes usuários do SUS chegaram ao hospital especializado em tempo hábil para o tratamento do infarto. Já em relação aos usuários do serviço hospitalar privado, 80,5% conseguiram chegar a tempo.

Segundo os pesquisadores, dentre os percalços que inviabilizam a chegada dos pacientes a tempo na rede pública tem-se: escassez de ambulâncias; demora na realização do diagnóstico (utilização de sistema de telemedicina cujo diagnóstico é realizado na Bahia); realização de diagnóstico falho; e desarticulação da rede de atendimento cardiológico.

Embora alarmantes, os resultados confirmam a realidade da saúde pública brasileira, que há décadas se encontra em situação precária e cuja situação não encontra perspectiva próxima de melhoria. Sobretudo em tempos de vigência da Emenda Constitucional nº 95 (PEC 55/261), que ao prever o congelamento (ainda que disfarçado) dos gastos públicos com saúde, vai em contramão com o viés da economia da saúde, que roga que tais gastos devam manter uma crescente em razão do grande déficit do Estado com o sistema de saúde público, bem como com o custeio de novas tecnologias, fundamentais para a manutenção e melhoria da saúde dos cidadãos.

À luz do resultado do estudo aqui relatado, questionamentos e dúvidas inevitavelmente surgem. Até quando o Estado seguirá se escusando do seu dever constitucional com o seu mantra da "reserva do possível"[2], justificando aos usuários e dependentes do SUS que segue fazendo o possível com o orçamento a ele conferido para garantir o direito constitucional destes à saúde? E mais, até quando o Estado permanecerá impune a eventuais responsabilizações civis pela perda de uma chance do paciente do SUS de ser curado ou de ter uma sobrevida?

Tais questionamentos merecem especial destaque quando analisados com o resultado da pesquisa que aponta que apenas 47,5% dos pacientes usuários do SUS chegaram ao hospital especializado em tempo hábil para o tratamento do infarto.

Percebe-se de logo que da vítima do infarto usuária do SUS lhe é tolhida mais da metade da probabilidade de submissão a tratamento adequado e consequentemente de ter uma maior chance de sobrevida tão somente em razão da falha por parte do Estado em transportar o paciente no lapso temporal inferior a 12 horas para centro especializado, em um Estado cujos municípios mais distantes do referido centro se situam a cerca de 200 quilômetros de distância.

Está-se diante de um Estado que não apenas se omite em garantir o direito à manutenção da saúde por seus cidadãos, como também em razão de sua atuação desastrosa, provoca dolosamente um ato ilícito que faz com que o paciente perca a chance de ser curado ou ter uma sobrevida. Esta última situação representa a materialização do instituto jurídico da perda de uma chance, que aplicada na esfera da saúde, denomina-se perda de uma chance de cura ou sobrevida.

É dizer: o Estado interferiu substancialmente em reduzir as chances de cura do paciente vítima de infarto ao não transportá-lo em tempo hábil para o hospital especializado, fazendo com que o mesmo perdesse uma chance séria e real de ser tratado adequadamente e sobreviver.

Trata-se de uma tarefa que se classificada em níveis de complexidade, situaria-se em uma baixa posição, uma vez que é incontroverso que transportar um paciente até o hospital é tarefa mais simples e com mais chances de sucesso que submeter um paciente a um procedimento cirúrgico cardíaco. Todavia, sequer a tarefa de transporte consegue ser desempenhada com sucesso pelo Estado.

Apesar de ser uma teoria recente e que ainda se encontra pouco desenvolvida teoricamente na doutrina jurídica, a indenização pela perda de uma chance já foi acolhida pelo ordenamento jurídico brasileiro em decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça através da ministra Nancy Andrighi, ao condenar profissional da saúde que cometeu ato ilícito responsável por reduzir as possibilidades de cura do paciente.

Um simples levantamento no acervo de decisões judiciais no Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe faz concluir que o referido tribunal jamais utilizou o fundamento da perda da chance de cura ou sobrevida para indenizar as vítimas deste dano, não obstante a clarividente constatação com o estudo aqui apresentado de que o Estado de Sergipe diariamente reduz à metade a chance dos pacientes vítimas de infarto receberem tratamento adequado em razão da falha no transporte dos mesmos ao hospital especializado. Trata-se de um panorama que urge ser redesenhado.

Em que pese o estágio embrionário desta teoria perante os tribunais brasileiros, a sua fomentação é tarefa primordial de responsabilidade dos que operam a ciência jurídica, sobretudo os advogados e os juízes. Os primeiros, devem buscar a real aplicação da teoria no caso concreto, não a fazendo confundir com teorias de responsabilização conexas mas diversas como o dano material e o dano moral. E aos segundos, cabe o múnus de aplicar a lei ao caso concreto a eles apresentado e consequentemente garantir a preservação dos direitos daqueles que tiveram suas chances de cura ou sobrevida em razão de um ato ilícito, através da condenação do agente causador que atualmente segue impune.

O benefício imediato da aplicação da referida teoria contra o Estado é o surgimento e crescimento de condenações judiciais do mesmo, e a esperança de que com as crescentes determinações judiciais indenizatórias, surja o despertar do interesse por um fornecimento de saúde pública de forma humana, coerente, racional, financeiramente responsável e eficaz. Alegar que tal fenômeno pioraria a situação do Estado hoje ineficaz é ao menos concordar e aceitar a triste realidade da saúde pública constatada atualmente em todo país.

Que a possibilidade de responsabilização do Estado pelos danos provocados pela perda de uma chance de cura ou sobrevida aos que, por não possuirem alternativa à submissão ao SUS, são suas vítimas diárias, busque acordar este Estado responsável por [não] garantir o direito constitucional à saúde e o faça ver que sem saúde não há vida.


[1]http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/03/1871057-tratamento-de-infarto-tem-via-cruciseabismo-entre-suserede-privada.shtml

[2] Segundo SILVA e VIEIRA (2016, p.20, apud FERNANDES, 2014, p. 582) “a chamada cláusula da ‘reserva do possível’, que começou a ser alegada a partir da década de 1970, é criação do Tribunal Constitucional alemão e compreende a possibilidade material (financeira) para a prestação dos direitos sociais por parte do Estado, uma vez que tais prestações positivas são dependentes de recursos presentes nos cofres públicos. A partir daí, alguns autores vão defender que as aplicações desses recursos e, consequentemente, a implementação de medidas concretizadoras de direitos sociais seria uma questão restrita e limitada à esfera da discricionariedade das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas nos planos de políticas públicas destes e conforme as previsões orçamentárias”.

[3] REsp 1254141/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/12/2012, DJe 20/02/2013. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201100789394&dt_publicacao=20/...

  • Sobre o autorAdvogado, mestre em Direito da Saúde pela Universidade Aix-Marseille (França)
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Se o problema for na rede privada, a Justiça não hesitará em culpar pela incompetência em salvar a vida do cliente que paga pelo serviço. Mas se for na rede pública, a quem recorrer?

O Estado é engraçado, não pergunta se queremos o serviço, não tem a menor obrigação com a qualidade e também não hesita em enviar a fatura na forma de imposto. Mas na hora de ser chamado para responder, sempre tem desculpas de que não tem dinheiro, que não pode atender a todos...

A quem defende um Estado grande, sugiro coerência: use apenas serviços públicos. continuar lendo

O Estado, como muito bem abordado no artigo (acreditando-se nos números apresentados - e não há duvidar) reduz drasticamente as chances de sobrevivência ou de sobrevivência saudável dos pacientes cardiopatas ou acometidos de infarto.

Contudo, o mesmo Estado, envergando a toga preta, manda indenizar presidiários, por indignas condições carcerárias.

Curiosa aplicação da teoria da reserva do possível. Cruel como um cossaco russo. continuar lendo